segunda-feira, outubro 18, 2004

Perdeu, perdeu, Romário, perdeu!

Nem sei por que liguei o computador de novo. Já tinha desligado tudo depois de me despedir dos amigos internautas, tomado um bom banho e tirado as tralhas de cima da cama. Estava pronto para dormir, mas precisei me vestir e ligar o computador de novo.

Não fazia o menor sentido, mas não consegui me deitar. Nem sentar na cama eu consegui. Precisei ligar o computador e escrever isso:

Por muito tempo eu tive um tipo de mantra, um pensamento recorrente, sei lá, algo que eu pensava sempre que aparecia alguém na minha frente dizendo ou fazendo algo que para mim não fazia o menor sentido, mas eu conseguia evitar dizer isso. Pode ter sido uma desculpa para mim mesmo, uma muleta para me permitir a omissão, a lavagem das mãos frente algo que me parecia absurdo. No começo foi difícil. Demorou, mas com o tempo a simples lembrança desencadeava uma paz incrível. Com o tempo passou a ser acompanhado de um sorriso, que o interlocutor associava à minha concordância com o absurdo que eu tinha acabado de presenciar. E ficava bom para os dois.

"Tudo bem, a realidade se impõe."

Era só isso. "Tudo bem, a realidade se impõe." Só fui perceber minha ingenuidade, só fui perceber que poderia não ser bem assim quando li Oliver Sacks pela primeira vez, enquanto esperava uma mulher maravilhosa sair do banho. Acho que ela nunca desconfiou, mas enquanto ela ia tomar banho, sorrateiramente eu lia um pouco do livro dela. E acabei por descobrir que não, nem sempre a realidade de impõe. É possível estar e ficar completamente alheio à realidade.

É o que parece estar acontecendo com o Romário, que nunca deixou um absurdo sem resposta. O único jogador de quem eu tenho uma foto guardada: ele correndo, de mãos e braços abertos, comemorando um gol contra Camarões na Copa de 94. Sei que é ele porque está de costas e acima do número 11 está escrito ROMÁRIO. Em sua arrogância, se Pelé era o 10, ele tinha de ser o 11. Nunca o 9

Os indícios estão aí. Mostrando que vive um mundo só dele, brigou com o técnico na semana em que seu time tinha um confronto direto com um adversário que também tinha a chance de chegar mais perto da zona de classificação para a Libertadores, classificação que para o Fluminense seria tão importante quanto um título. Ao invés de estar pensando em seu time, ele aparece dizendo ter sido o melhor jogador depois da Era Pelé, e temos vontade de perguntar a ele quem é o presidente do Brasil, certos de que dirá "Fernando Henrique Cardoso" a quem jurará seu voto se passar a emenda da reeleição. Isso se ele não responder simplesmente “eu”.

O discurso dele é perfeito, mas parece estar seis anos atrasado. Faz parecer que só agora ele está se recuperando do anúncio do corte da Copa de 1998. Só agora ele está despertando de um estado de perturbação mental que o impediu de continuar reagindo às imposições da realidade. Aquelas portas de banheiro com desenhos do Zagallo e do Zico já eram parte da sua esquizofrenia. Ou de sua clausura psíquica. Como escreveu Sacks, ou alguém comentando sua obra, já era "um paciente imerso num mundo de sonhos e deficiências cerebrais, que preservou sua imaginação e construiu uma identidade moral própria."

Deve ter sido um choque violento, realmente. Depois de conseguir um título mundial para o Brasil encerrando 24 anos de tristezas, choros, decepções, Zagallos, Perus, ditaduras argentinas, Paolos Rossis, Zicos, Sócrates, Josimares, Lazzaronis, Cannigias, Maradonas e todos os outros tipos de sofrimentos por que brasileiros e afins passaram, deve ter sido acachapante ficar sabendo que estava cortado da Copa seguinte por causa de uma lesão tratável.

Não é para qualquer um suportar uma frustração dessa magnitude. Por muito menos homens se matam e mulheres... bom, deixa pra lá. O Romário já exige demais.

Talvez um espasmo o teria tirado desse universo completamente particular se o Vanderlei Luxemburgo o tivesse levado para os Jogos Olímpicos de 2000 (para ele mesmo o mundo poderia ter sido completamente diferente) ou se Felipão o chamasse para a Copa de 2002. Mas não.

Não sei se deveriam tê-lo levado. Há excelentes argumentos a favor e contra cada uma dessas decisões, e a forma como ele tem reagido aos Gamas da vida e aos mundo seja um indicativo forte de que não existe nada além dele. Devem ser respeitados, mas alguém precisa estudá-los para sabermos como proceder caso surja outro Romário.

E não quero saber como teria reagido o Pelé se em 1962 --depois daquele chapéu na final da Copa de 58, portanto--, o Gilmar dos Santos Neves tivesse ido até ele e dito "Negão, pediram para eu te dizer que você foi cortado da Seleção. Você não vai disputar a Copa do Chile".

Faz sentido para você?

Para o Romário deve ter sido mais ou menos como se... (complete você mesmo, com a sua memória mais triste, com a notícia que te pegou mais desprevenido e te tirou de órbita por dois ou três dias, meses, ou até anos, que acontece, também, e não é só com você, não.)

Romário foi o melhor jogador pós era Pelé na minha opinião. Pelo menos até 2001. Ronaldo deve superá-lo, como disse o Gama e digo eu também, apesar de não ter vencido nem o Campeonato Universitário do ABC de 1990. E tem o Cafu, se bem que quando falamos em melhor, falamos no melhor atacante goleador, que no fim das contas é o que vale.

Mas o próprio Ronaldo deve muito ao Romário. O título de 94 tirou a pressão das pernas de todos os outros jogadores pós-Romário. E nesse ponto ele é e sempre será o mais importante jogador da Seleção Brasileira Pós-Pelé.

Se com o título nos EUA a derrota de 98 rendeu até CPI, talvez o Brasil inteiro tivesse sofrido uma convulsão junto com o Ronaldo se ainda estivéssemos na fila desde 70.

Pode ser apenas uma deferência a um jogador que me proporcionou uma das maiores alegrias que eu tive na vida de torcedor, mas me sinto como se eu estivesse olhando para uma pessoa querida após um acidente sério, achando que não vai mais saber contar até dez e será incapaz de me reconhecer ou à própria mãe.

Quero que tudo isso não passe de um pesadelo e que ele melhore o mais rápido possível e volte a ser um cara legal, até um pouco arrogante, mas pelo simples fato de ter consciência de que realmente não precisar provar nada para ninguém --já que humildade é para poucos--, para que eu possa olhá-lo nos olhos e dizer "cala a boca, filho de uma puta! Guarde silêncio para que possamos nós dizermos todos os elogios que você merece e possamos também, por um momento mágico, esquecermos que você nem é tão legal assim, mas merece nossa reverência por tudo o que fez dentro de campo".

Agora eu vou dormir.
Me deu vontade de escrever. Escrevi. Pronto. Não importa como ficou. Eu só quero dormir.

E talvez sonhar com um jogo de despedida para Romário em um Maracanã lotado, com todos os melhores jogadores de todos os tempos aplaudindo sua entrada em campo, e a imprensa relembrando todo o brilho com que ele nos presenteou. Com seus gols sendo transmitidos durante todo um dia em rede nacional de rádio e televisão. Despedida e tratamento que ele realmente merece.

E ele, feliz, apenas acenando. Porque a realidade se impõe, mas só para quem a aceita. De qualquer forma, talvez seja o caso de alguém entrar em sua casa chutando a porta e gritando “perdeu, perdeu, Romário, perdeu”. Quem sabe assim ele aceita?


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